Uma livraria muito minha

Agora que penso nisso, desde que me lembro que tenho um sonho secreto. Um sonho pessoal, particular, íntimo, privado. Vagamente sórdido. Pensando melhor, talvez ele não seja tão secreto assim: afinal, já o contei a meio mundo – e só faltam vocês, são vocês a metade que falta.

Qual o sonho? Eis o sonho: ser o orgulho dono de uma livraria. Em Setúbal. Isso mesmo: em Setúbal, onde ninguém lê, ou realmente parece ler. Minto: há quem leia. Eu, por exemplo. Eu e mais meia dúzia de pessoas que sou capaz de identificar numa multidão. Ou mais propriamente no café. Em Lisboa, sempre atarefadas e em trânsito, as pessoas lêem no metro. Em Setúbal, relaxadas e a pensar no trânsito, as pessoas lêem no café. Calculo, no entanto, que tanto em Lisboa como em Setúbal, como em qualquer outro sítio para o caso, existam pessoas que lêem em casa enquanto pensam no metro e no café.

Mas, e ah…, ter uma livraria: ser rico para além da imaginação em papel impresso e pobre para além dos limites em papel monetário.

Afirmo: tenho, aliás, o sítio perfeito para montar a maravilhosa empresa. É aqui mesmo, exactamente por baixo da minha casa. E adeus metro, adeus trânsito, adeus café.

Esquematizei uma vez, com a ideia de escrever um romance, essa minha vida imaginária. E ela era bela. E ela era boa. Só o romance era vagamente patético. Compreendam-me: na verdade, eu não quero ter uma livraria para vender livros, mas apenas uma livraria onde possa ler os “meus” livros. Digo meus e não me engano: porque, afinal, vocês não os poderão ter.

«Those books, are they real leather?
They’re real Dickens.»

«Bye, bye all you time wasting bastards, back to the streets. Bye, bye.»

Pessoalmente sempre me imaginei como um Bernard da série Black Books, mesmo antes de existir uma Black Books. Antes de existir um Bernard existia um eu de igual mau carácter, sentado à sua (minha) secretária, com o mesmo cigarro na boca (e que se lixe a lei), um copo de vinho tinto numa mão (que se lixe os alcoólicos anónimos) e um livro muito meu na outra (e que se lixem os supostos clientes).

Negócio é coisa suja. Pergunto: onde está o prazer de estar completamente rodeado de livros se não se tiver a necessária calma e paz de espírito para os ler?

O horário de expediente seria o óbvio. A abertura far-se-ia quando eventualmente acordasse e o fecho quando eventualmente me afadigasse. Ou me desse a fome. Um dos dois. A cama e o frigorífico estariam a um lance de escadas de distância.

Para não complicar, o sítio teria apenas duas secções. Não mais que duas secções. As coisas boas e as coisas más. Que é como quem diz a “Literatura” e a “Merda”, sem olhar a nacionalidades ou temáticas. É claro que a literatura seria para mim. A merda, essa, poderia ser para quem a quisesse, e estivesse disposto (eu diria louco) a pagar – e bem, contabilizando o imposto acrescido de mau gosto – por ela.

Naturalmente, e como não podia deixar de ser, os amigos, esses, seriam sempre bem-vindos. Para conversar, trocar ideias, colocar os assuntos em dia. Ocasionalmente até, os melhores dos amigos poderiam ser encorajados a levar alguma da literatura. Estritamente por empréstimo, claro.

E seria uma longa e eterna e encantadora semana, não seria?

_ Tiago Apolinário Baltazar

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