Meridiano de Sangue ou o Crepúsculo Vermelho no Oeste, Cormac McCarthy

meridianodesangueMeridiano de Sangue baseia-se em acontecimentos verídicos. Narra os massacres que aconteceram, em meados do século XIX, no México, perto da fronteira com os EUA, perpetrados por um bando chefiado por um homem chamado Glanton. No início, estes indivíduos tinham sido contratados pelas autoridades mexicanas para matarem índios e lhes tirarem os escalpes. Mas, rapidamente, passam dos índios para os mexicanos e destes para tudo o que mexa, num frenesim de destruição e de sangue que parece não ter fim. Tanto homens como animais.

Aliás, no livro, a linha que separa o homem do animal é muito ténue. Temos exemplos de homens que são tratados como animais ou que vivem como animais ou que são mortos como animais. Lama, fezes e urina são elementos recorrentes no livro, mostrando o lado animal que existe no ser humano. Mas, se o livro nos mostra as semelhanças também não recua perante as diferenças. Um homem é um homem. O bicho mais perigoso de todos. Os outros predadores do livro: lobos; abutres; ursos, não são páreo para ele. Shakespeare, na peça Ricardo III, explica, pela boca do futuro rei, essa diferença fundamental:

Anne: Villain, thou knowest nor law of God nor man;

No beast so fierce but knows some touch of pity.

Gloucester: But I know none, and therefore am no beast.

O leitor acompanha o bando mas não tem ligação afectiva com nenhum dos seus membros. Nem mesmo com o rapaz, que permanece uma incógnita do princípio ao fim do livro, apesar do leitor sentir a sua solidão e cansaço, principalmente na parte final. O narrador é implacável na descrição dos actos do bando, não omitindo nada. Como se quisesse obrigar o leitor a ler. Há uma espécie de compulsão para seguir o bando e ser testemunha dos seus actos inomináveis. Apesar do desconforto e do nojo que esses actos despertam. Harold Bloom tem razão quando diz que Meridiano de Sangue é para leitores corajosos.

Apesar da violência extrema, Meridiano de Sangue também tem momentos de pura poesia. Estes estão ligados à descrição dos vários tipos de paisagem por onde o bando deambula; às estrelas no céu; aos inúmeros pôr e nascer do sol; ao mar; à chuva; ao vento. A Natureza, tal como o leitor, é uma observadora dos actos dos homens. Desde sempre; parece dizer-nos McCarthy. É mais que antiguidade. É uma presença que vem do princípio dos tempos. Uma força primeva que vê os mesmos crimes serem repetidos vezes sem conta. Mas não é por isso que se torna mais familiar ao homem. Ela permanece sempre uma incógnita. Uma força estranha, imperscrutável, quase alienígena. Um obstáculo a ser vencido… por quem o conseguir. É a relação do Homem com a Natureza que eleva Meridiano de Sangue de um livro/choque, uma mera narrativa factual, que poderia ter sido se McCarthy fosse um escritor menor, a um livro sublime. Porque é essa relação que dá perspectiva à violência praticada pelo bando. Dá-lhe um significado maior. Uma transcendência. Insere-a no caminho mais vasto de destruição e morte que sempre existiu desde que o homem é homem e que só acabará quando ele próprio se extinguir.

Harold Bloom em Como ler e porquê? destaca a personagem do juiz Holden. Quem é este homem? Melhor dizendo, o que é este homem? Este é o grande enigma do livro. Para mim, o juiz é um demónio. Talvez, o demónio. Há muitas razões que me levam a pensar assim. Fisicamente o juiz é um homem impressionante. Mede mais de dois metros, é corpulento, completamente careca, uma das suas características mais marcantes é não ter um único pêlo no corpo, tem a pele muito branca. Gosta de andar nu, principalmente no meio de uma tempestade. É prestidigitador, arqueólogo, dançarino, pregador, desenhador, historiador, astrónomo, adivinho, alquimista. Sabe todas as línguas que existem. Está à vontade em qualquer lugar. Nunca dorme. Diz que todos os pássaros deviam estar em jardins zoológicos. Diz que a guerra é Deus. Diz que é imortal. A primeira vez que o bando o vê, o juiz está sentado numa pedra, no meio do deserto, parecendo estar à espera deles. Glanton e os seus homens estão a ser perseguidos por índios e Holden ajuda-os, miraculosamente, a escapar. Ninguém sabe de onde ele veio e ninguém acredita que descenda de alguém. Todos lhe têm medo. Harold Bloom compara-o a Moby Dick e a Iago. Diz também «que é ao mesmo tempo mais e menos do que humano». Mas talvez a melhor pista para a personagem seja a que é dada pelo próprio juiz Holden: «Tudo o que existe na criação sem o meu conhecimento existe sem o meu consentimento.»

O juiz vê o mundo como uma guerra constante. Para ele há dois tipos de homem: os que matam e os que morrem. Sendo que os que matam não deixarão de ser mortos por outros, e assim sucessivamente, como uma dança. A guerra é o jogo supremo que dá sentido à vida. O juiz Holden acredita que todo o ser humano tem um destino marcado ao qual não pode escapar. Se o juiz acredita numa entidade que rege o mundo, esse ser não me parece que seja o Deus do Novo Testamento. Nem mesmo o do Velho. Imagino-o mais como um deus pagão. Um daqueles que exigiam sacrifícios humanos, como Baal, por exemplo.

A escrita de McCarthy é seca, precisa e com um ritmo semelhante ao de uma montagem cinematográfica. Cada frase é uma mudança de plano. Parece um filme do Sergio Leone. Sam Peckinpah e Anthony Mann são outros nomes dos Westerns que me vieram à cabeça enquanto lia o livro. A inserção do homem na paisagem é muito semelhante à dos filmes de Mann. E o ambiente de fronteira faz lembrar a Quadrilha Selvagem de Peckinpah, sem, todavia, a nostalgia deste. Não há saudades de um tempo passado em McCarthy. A sua visão da conquista do Oeste é brutal e crua. Em Meridiano de Sangue não há lugar para heróis, nem sequer para anti-heróis.

Em termos literários, a influência mais notória é a de Faulkner. É a ele que McCarthy vai buscar a simbologia bíblica, entre outras coisas. Harold Bloom refere também Melville. Para além destes dois noto a influência de Shakespeare e de Dante.

A tradução portuguesa, da autoria de Paulo Faria, é bastante boa.

_ Ana Quinta
Meridiano de Sangue ou o Crepúsculo Vermelho no Oeste
Cormac McCarthy
trad. Paulo Faria
Relógio d’Água
2006

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