Yoga para pessoas que não estão para fazer yoga, Geoff Dyer

Contrariamente ao que o título pode sugerir, Yoga para pessoas que não estão para fazer yoga, de Geoff Dyer, não é um livro de auto-ajuda destinado a levar-nos a alcançar a paz interior, a encontrar o amor em locais inesperados ou até a atingir o sucesso empresarial na arte das vendas. Podia ser, mas não é. Originalmente publicado no ano de 2003, Yoga para pessoas que não estão para fazer yoga é um livro de viagens que, aliás, até ganhou o prémio W. H. Smith Best Travel Book em 2004. O que não deixa de ser um pequeno feito. Principalmente porque este é um livro de viagens sem o ser propriamente, tal como o título, de facto, pode (e deve) sugerir.

Sejamos francos (e elogiosos): se estiverem à procura do típico, do 99/100, igual a tantos outros, eu-vou-viajar-e-preciso-de-saber-coisas-acerca-do-sítio-para-onde-vou, livro de viagens, não o encontrarão aqui; esta é a excepção – este é o 01/100, onde todas as semelhanças com a realidade são pura ficção. O que não espanta – afinal, falamos de Geoff Dyer, com quem tivemos o prazer de conversar aquando da sua passagem por Portugal.

Geoff Dyer nasceu em Inglaterra a 5 de Junho de 1958, na cidade de Cheltenham, Gloucestershire. Tem agora 54 anos (a caminho dos 55), e uma bibliografia recheada de títulos que desafiam a convenção. O crítico James Wood já o disse: Dyer escreve obras tão diferentes, tão peculiares e tão inimitáveis que podem de facto ser consideradas únicas. (E sei como facto – informações privilegiadas – que a sua publicação em Portugal é um investimento pessoal da sua presente editora; um facto que não deve ser apenas apreciado e louvado como acima de tudo incentivado.) E que outros adjectivos poderiam ser utilizados para descrever obras tão indefiníveis como But Beautiful: A Book About Jazz (1991), The Missing of the Somme (1994), sobre a I Guerra Mundial, ou The Ongoing Moment (2005), sobre fotografia? Ou os seus romances The Colour of Memory (1989), The Search (1993), Paris Trance (1998) e Jeff in Venice, Death in Varanasi (2009) (com edição portuguesa: Jeff em Veneza, Morte em Varanasi, Livraria Civilização Editora, 2010). Ou ainda a sua última obra, Zona: A Book About a Film About a Journey to a Room (2012), sobre o filme Stalker (1979) de Andrei Tarkovsky e, claro, o agora recentemente publicado em Portugal Yoga para pessoas que não estão para fazer yoga? Efectivamente, nenhuns outros.

«Este livro é um mapa rasgado e pouco fiável de algumas paisagens que constituem uma fase particular da minha vida. É sobre lugares onde aconteceram ou não aconteceram coisas, lugares onde passei algum tempo e coisas que ficaram comigo, lugares que eu quis conhecer ou lugares por onde passei ou aonde fui dar. De certa maneira são todos o mesmo lugar – a mesma paisagem – porque a pessoa à qual estas coisas aconteceram era a mesma pessoa que, por seu turno, é a soma de todas as coisas que aconteceram ou não aconteceram nestes e noutros lugares. Tudo neste livro aconteceu realmente, mas algumas coisas que aconteceram aconteceram apenas na minha cabeça; da mesma maneira, todas as coisas que não aconteceram também não aconteceram nesses lugares.»

A pessoa a quem todas as coisas aconteceram e não aconteceram é um certo (digamos assim) Geoff Dyer que ronda os seus 40 anos e que vive naquilo que só podemos definir como num trânsito permanente, de «casa» em «casa», de quem faz de todo o mundo a «casa» onde habita. São, ao todo, onze ensaios que pairam sobre zonas tão distantes e díspares como Nova Orleães nos EUA, o Camboja, Ubud na Indonésia, Paris, Roma, Miami, Amesterdão, Trípoli (Léptis Magna) na Líbia, ou Detroit; e isto sem esquecer o Festival Burning Man em Black Rock City, no deserto do Nevada, EUA. Falo em ensaios que pairam sobre zonas porque é exactamente isso que eles são. Porque Geoff não mergulha efectivamente nas zonas – não é, em certo sentido, verdadeiramente invadido por elas; ele apenas como que plana sobre elas, um viajante no verdadeiro sentido da palavra que a todo o momento procura suscitações de eventos e pensamentos. Os seus ensaios são habitados por histórias (no seu duplo sentido de histórico e ficcional) de locais e personagens. Ele está lá, mas a sua mente vagueia.

«Em Roma vivi à maneira grande dos escritores. Basicamente, não fazia nada o dia todo. Mesmo nada. Talvez por causa disso eu fosse um exemplo tão sedutor para muitos dos aspirantes a escritores que viviam perto. Ou, mais precisamente, era um exemplo para Nick, o jovem americano que vivia à minha frente, que não lera nenhum dos meus livros e para quem o meu nome não significava nada.»

Estes são ensaios acerca de eventos que aconteceram, mas que podiam muito bem não ter acontecido (e não terão realmente acontecido exactamente como são descritos – isso mesmo, informações privilegiadas). É verdade que os locais sugerem os eventos – e talvez esses eventos não pudessem ter acontecido em qualquer outro lugar, nem em qualquer outra altura. Mas, e exactamente por isso, é fácil de entender que a personagem principal não poderá ser sempre outra que não o seu próprio autor, nas suas aventuras e desventuras. É costume dizer-se que todas as grandes obras literárias comportam uma dose de componente autobiográfica. Neste caso, isso não podia ser mais verdadeiro. Na escrita de Geoff Dyer, a realidade serve o objectivo da ficção tal como a ficção segue a procura da realidade. A linha que divide o real e o ficcionado é fina, translúcida, quase inexistente. É uma estreita via de dois sentidos, cheia de colisões. Como se disse, este não é o livro de viagens a que estamos habituados.

São onze histórias que se lêem como pequenos elementos de ficção, como contos. Em cada um dos ensaios Dyer transporta-nos para um local. Mas, mais do que isso, cada ensaio transporta-nos para um local onde Dyer se encontra e por onde vagueia – física e mentalmente – encontrando personagens e paisagens que a todo o momento possibilitam uma reflexão tanto acerca das situações que encontra como das situações em que o mesmo se encontra. São situações divertidas e caricatas, às vezes melancólicas, às vezes de desespero e, sim, também de uma certa dose de redenção, polvilhadas com algum sexo e algumas drogas (ainda que com pouco ou nenhum rock and roll, mas alguma música electrónica).

Esta leveza e à-vontade não nos deve, no entanto, induzir em erro. Geoff Dyer é um literato. E, como qualquer bom literato, Dyer relaciona-se com o mundo através da cultura. Esse é o seu ponto de apoio. Esse é o seu porto seguro. Não se deve por isso estranhar as várias referências literárias e culturais (às vezes meio escondidas a que o tradutor, João Tordo, faz, e bem, por chamar à atenção) que tendem a surgir muitas vezes como plataforma para um certo pensamento e noutras em diálogos entre personagens que parecem partilhar um pequeno segredo ou nota pessoal. Num local estranho, é a cultura que resgata o autor e lhe permite formular um sentido, um ponto de referência no seu itinerário.

Porque, em grande medida, e não de todo evidente à partida, aquilo que aqui claramente encontramos é um homem em busca de algo, um alívio para o peso da existência, mas que a todo o momento parece destinado a sucumbir sob o seu próprio desencanto: «que toda a disciplina e ambição intelectual dos primeiros anos havia sido dissipada pelo ocasional abuso de drogas, a indolência e a desilusão, que me faltava um propósito e um objectivo e que tinha ainda menos ideia do que queria da vida agora do que aos vinte ou trinta anos, que ia a caminho de me transformar numa ruína, e que não me importava nada com isso.»

Mas importava-se. Deve ser dito que as histórias não seguem uma ordem cronológica evidente e são fundamentalmente independentes entre si. No entanto, há um sentido na ordem como foram organizadas (e nos são propostas como ordem de leitura). O conjunto forma uma espécie de percurso de sentido circular, onde o autor começa com aquilo que se pode definir como um estado de espírito aventureiro, despreocupado, mas que gradualmente vai dando lugar a um estado de espírito cada vez mais pesaroso, inundado de tédio e carregado de desconsolo («Eu estava a chorar. Sem qualquer barulho, uma torneira constante de lágrimas. […] Estou a ter um esgotamento completo, disse a mim próprio, estou a ter um esgotamento enquanto tomo o pequeno almoço».), só para em seguida vir a renascer das cinzas, numa forma de salvação redentora.

«E ali estava eu, a olhar para as brasas onde o Homem estivera. Era um ponto alto na minha vida, mas também me era familiar: um daqueles momentos que fazem como que a nossa vida valha a pena porque nos conduziu ali. Se me dessem a escolher, eu viveria a minha vida bastante feliz outra vez sem hesitar, sem mudar nada.»

A escrita de Geoff Dyer tem a interessante particularidade de ser extremamente elegante e divertida, servindo como um contraponto necessário quando se foca em situações aparentemente embaraçosas («O meu pénis, como acontece quando estou nervoso, pedrado ou bebi demasiado café (nesta ocasião todos os três) havia diminuído dramaticamente: não passava de um prepúcio enrugado, e foi difícil de mijar.»), ou até mesmo quando toca em assuntos sérios. Um destes casos é o conflito que se origina na compra de uma lata fresca de Coca-Cola a uma menina cambojana, rapidamente trocada pela compra de uma outra lata de Coca-Cola a um rapaz cambojano, no texto “Miss Camboja”: «Era um rapaz com cerca de doze anos, de muletas, e uma perna amputada abaixo do joelho. Era a sua perna deficiente, ou assim pensámos. Depois vimos que a outra perna – a perna boa – era, na verdade, uma perna de pau; era, por outras palavras, uma perna muito deficiente mesmo; em sentido estrito, não era sequer uma perna.» Um facto de tragédia é então transformado numa situação de contornos caricatos e vagamente humorísticos que completamente nos desarma sem no entanto nos fazer esquecer a sua seriedade e nos leva a uma linha de diálogo sem sentido evidente que quebra a dureza da situação sem no entanto a obscurecer.

No fim, e seguindo a ordem proposta, Yoga para pessoas que não estão para fazer yoga, ganha todo um novo sentido como livro de viagens: ele não é apenas um livro que nos leva a locais físicos, mas um que nos leva a uma viagem interior no próprio mundo mental do viajante que por eles passa. Esta é uma viagem que a todo o momento nos alerta para a necessidade de viver, explorando o humor e a tristeza, o cómico e o desesperante de todas as situações. E, afinal, talvez seja esta a verdadeira viagem que todos nós devemos procurar. Uma que, no seu âmago, simboliza a viagem que a própria literatura deve almejar representar: aquela que não nos mostra meramente o mundo, mas antes que nos mostra como o mundo nos pode não só divertir como tocar.

_ Tiago Apolinário Baltazar

Yoga para pessoas que não estão para fazer yoga
Geoff Dyer
trad. João Tordo
Quetzal
2013

Comentar