Literatura sem adjectivos

gayA verdade é que, como chegámos onde chegámos, eu não sei. Sei apenas que tudo isto começou mais evidentemente aí por volta dos anos 40 do século XX, com a II Guerra Mundial em pano de fundo. Começou é uma maneira de dizer. Mais correcto será dizer que se institucionalizou. Porque, de facto, ela sempre existiu, não institucionalizada, desde pelo menos a Grécia antiga; afinal, tempos mais simples em que a literatura valia por si mesma e não necessitava de adjectivos simplórios. Esclareço a digressão: porque falo, naturalmente, daquilo que se convencionou chamar de “Literatura Gay e Lésbica”.

Como digo, eu não sei como chegámos aqui. Mas sei quando comecei a notar que tínhamos efectivamente chegado aqui. Foi num dia simples, faz alguns anos, em que passeava descontraidamente ao fim da tarde pelos corredores de uma livraria-e-tudo-o-resto-mais que nem vale a pena publicitar. Uma estante em particular chamou-me a atenção. E, em letras garrafais lá estava essa coisa estranha que, vim a descobrir, se convencionou designar por “Literatura Gay e Lésbica”.

Detive-me por momentos. Cocei a cabeça, ajeitei os auxiliares oculares e ponderei inquisitivamente para comigo mesmo: literatura homossexual? (Publicito: foi na FNAC.) Aparentemente, era. E uma vista de olhos pela oferta proposta rapidamente transformou a minha questão numa elucidativa resposta em forma de listagem de nomes: Oscar Wilde, Truman Capote, Marquês de Sade, Gore Vidal, Christopher Isherwood e outras centenas de pervertidos que tais. Falo em pervertidos e não me engano. Porque, na verdade, toda aquela estante não passava de uma enorme e abismal perversão. Dos autores. Dos leitores. E da literatura, claro.

Devidamente esclarecido acerca da situação fiz, então, aquilo que, presumo, qualquer pessoa faria: entrei no esquema e, sem hesitação, pus-me à procura da estante que me identificasse o caminho literário da heterossexualidade, o qual, pelos exemplos opostos anteriores, só podia supor contivesse Hemingways, Millers e Bukowskis a rodos. Para minha surpresa, tal estante não existia. Ou, se existia, era tudo o resto. Curioso.

Curioso de facto. Ao que parece, Ernest Hemingway, Henry Miller e Charles Bukowski são, à falta de melhor definição, aquilo que devem ser – numa palavra, literatura; Wilde, Capote, Vidal, e outros tantos, afinal, e na cabeça desabitada de certas criaturas, apenas uns pobres gays que, por acaso, escreveram umas quantas palavras também elas gays. E eis, assim, como chegámos ao ponto supremo do filistinismo, onde as inclinações privadas dos autores se tornaram os pontos definidores das suas obras.

Suspiro. Duplo suspiro. Será que vale a pena discutir a idiotice? Infelizmente, parece que sim. Principalmente porque a idiotice, ao contrário do senso-comum, tende a disseminar-se.

Mas, e pergunto: o que faz de uma obra gay? O autor? As personagens? O tema? A conjunção de todos estes factores? A resposta ilude-me. E a bendita estante (da FNAC) não parece dar respostas claras. Qual então o critério? Somerset Maugham, por exemplo, era, pelo que consta, bissexual – e onde colocá-lo, no meio do corredor? –, mas dificilmente se poderá considerar que tenha escrito obras de teor homossexual (ou bissexual), porque era antes de mais um escritor e aquilo que na verdade lhe interessava explorar era a natureza das relações humanas. De Isherwood, declaradamente homossexual, digo o mesmo – e até a sua mais icónica obra, Um Homem Singular (A Single Man (1964)), só muito acidentalmente (e estupidamente) poderá ser reduzida a uma mera obra de uma cultura literária homossexual (afinal, eu já o disse: esse não é menos que um romance profundamente humano). A nobelizada Herta Müller não é (pelo que se sabe) lésbica, mas também já escreveu Tudo o que eu tenho trago comigo (Atemschaukel (2009)), uma obra que, algures, alguém, já alegremente classificou como um “romance gay”, meramente porque a sua personagem principal é, adivinharam, gay.

É claro que tudo isto não passa de uma ignorante desvalorização literária dos autores e das suas obras. Simplesmente, tal como não existem obras (e autores) heterossexuais também não existem obras (e autores) homossexuais. O que existem são obras e escritores. Ponto. E será este um pensamento assim tão radical?

Na verdade, parece que sim. Principalmente porque vivemos num mundo dominado pelo politicamente correcto, onde a teoria e a prática dificilmente se encontram. Porque, se na teoria se clama pela igualdade na diferença, na prática exige-se a mais evidente desigualdade na semelhança, fundada, entenda-se, na orientação sexual, na raça, e, também, nas vagas intelectuais (e esotéricas) do momento e nos seus eternos ismos.

Exemplo claro. Foi Spike Lee quem melhor demonstrou o ponto aquando de comentário ao novo filme de Quentin Tarantino, Django Unchained. Porque gostou? Porque não gostou? Nada disso. Porque se recusa a ver. E recusa-se a ver porque para o negro (e racista) Spike Lee é inaceitável que um branco Quentin Tarantino se proponha a contar a história de um negro e da escravatura americana. Mais: para Spike Lee, é simplesmente intolerável que um branco como Tarantino grave no papel e na película a palavra nigger. Quem pode falar de (e como os) negros são os negros, exclusivamente. Tal como, suponho, quem pode escrever, falar e ler autores ou obras homossexuais são os próprios homossexuais. E, afinal, não é para nos chamar a atenção para isso que serve a classificação de “Literatura Gay”?

Deve ser. Principalmente quando já há tops classificativos da coisa, promovidos por grupos dos mesmos. Não brinco. The Publishing Triangle, aparentemente uma associação de lésbicas e gays na área da publicação, fê-lo. Eis o seu top 5 (num lista de 100) dos melhores romances gays e lésbicos: 1. Morte em Veneza (Der Tod in Venedig) de Thomas Mann; 2. O Quarto de Giovanni (Giovanni’s Room) de James Baldwin; 3. Nossa Senhora das Flores (Notre Dame des Fleurs) de Jean Genet; 4. Em Busca do Tempo Perdido (À la Recherche du Temps Perdu) de Marcel Proust; 5. O Imoralista (L’Immoraliste) de André Gide. E assim se tem, de uma assentada, a transformação de toda a grande literatura numa pura caricatura. (E em Portugal, o crítico Eduardo Pitta é um bom exemplo desta distorcida mentalidade.)

Entendamo-nos: as pulsões homoeróticas e homossexuais são tão velhas quanto a própria existência humana e tão evidentes na literatura (e na arte em geral) desde que indivíduos se decidiram a escrever sobre elas – mas não, ponto importante e iminentemente distintivo, para elas (e basta ler Platão para exemplificar o caso). Gore Vidal, por exemplo, percebeu isto. Mais: percebeu que a pior descriminação é a auto-descriminação. Para Vidal, não existia tal coisa como um homossexual (ou um heterossexual). O que existia apenas eram actos homossexuais (e actos heterossexuais) de indivíduos que tinham certas preferências sexuais. Ideia simples: para Gore Vidal, homossexual (ou heterossexual) era um adjectivo caracterizador de uma acção e não um adjectivo caracterizador de pessoas e muito menos um adjectivo caracterizador de identidades.

É certo. Toda a obra literária espelha em si mesma, de uma forma mais ou menos evidente, as inclinações e as posições dos seus autores perante a realidade. Principalmente se forem de uma forte carga autobiográfica. Mas aceitar isto não é aceitar que tais evidências sejam os elementos definidores de uma obra e, sim, até mesmo de uma vida. Fazê-lo não é só perfeitamente injusto; é, pior, uma completa falta de respeito e de decência e de tino para com os seus autores e que demonstra pouco mais que uma homofobia crónica negadora da personalidade humana que eleva o preconceito a uma forma de estandarte – inclusive, ou especialmente, entre os grupos que afirmam que a desejam combater. E isto porque a adjectivação dos indivíduos, muitas vezes em forma de auto-descriminação, só serve para mistificar aquilo que não se deveria prestar a ser mistificável. Numa frase, não se combatem as muralhas construindo novas.

Afinal, a literatura não tem adjectivos porque trata do humano. E o humano é isso mesmo – um substantivo que não requer quaisquer adjectivos adicionais.

_ Tiago Apolinário Baltazar

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