Esperando por Martin Amis

AsboA literatura assume por vezes facetas de um verdadeiro vício. Pode induzir-nos a atitudes algo obsessivas, como acontece quando gostamos e experimentamos a pulsão de consumir tudo o que existir de uma colecção, de um estilo ou de uma obra inteira escrita pelas mãos de certo autor. A mim, por exemplo, acontece passar por fases de Martin Amis. Como leitor empedernido, sou capaz de aguentar o ímpeto de o fazer de enxurrada, de me empanturrar em três ou quatro livros seus de seguida. Aguento-me e procedo à técnica do conta-gotas (um de cada vez) e à técnica do espartilho (um género de cada vez: ora ensaio, ora contos, ora romance). Esta atitude um pouco tântrica de aproximação à leitura produz resultados, mas confesso que por vezes não é fácil.

A primeira vez – e a importância de uma primeira vez nunca é de menosprezar – aconteceu com a leitura inigualável de Money (re-publicado recentemente como Dinheiro pela Quetzal). Mesmo alertado por uma crítica de jornal que desaconselhava a leitura casual, por exemplo, no metropolitano, sob pena de fazermos a ridícula figura de nos pormos a rir sozinhos perante o espanto natural dos outros passageiros. Ignorei o alerta e naturalmente fiz várias vezes figuras menos próprias, soltando ocasionais gargalhadas a que se seguiam os inevitáveis rubores faciais… mas não desisti da leitura em todo e qualquer lugar até ao fim do volume. Infelizmente, à época não pude reforçar essa boa primeira experiência com outros romances de Amis pois foi o primeiro a aparecer por cá. Tive de esperar alguns anos até conseguir apanhar os primeiros volumes em inglês, antes de ele recomeçar a ser publicado na nossa língua materna.

Com o tempo, a míngua deu em fartura. Entre as subsequentes edições da Teorema e as mais recentes da Quetzal, não esquecendo o delicioso Os Outros na Cotovia, as obras de ficção de Amis têm sido publicadas por cá e de forma satisfatória. Apesar das primeiras experiências editoriais não terem sido brilhantes, podemos afirmar com segurança que hoje ele é claramente um autor com um público. O que nos leva a questionar a ausência de certos títulos da sua bibliografia. A nível da ficção romanesca, faltam ainda publicar Dead Babies e Success, o segundo e terceiro romances do autor, produções literárias do seu início de carreira nos anos 70, bem como Time’s Arrow de 1991, mas se partirmos do princípio que já existem dez romances impressos, podemos estar descansados quanto à representatividade. Porém, o mesmo já não se pode dizer em relação a outras formas de expressão literária, como o conto e o ensaio, onde há falhas mais gritantes.

O único volume de contos que achou lugar entre nós continua a ser o razoável Água Pesada (do qual podem ler aqui um conto no original), mas continuamos sem nenhum dos anteriores Einstein’s Monsters e God’s Dice, mas penso ser a nível da não-ficção que existem algumas ausências verdadeiramente gritantes. É verdade que temos em português os longos ensaios: a fabulosa diatribe autobiográfica de Experiência, o controverso Koba, o terrível sobre Estaline, bem como o último e igualmente fracturante O Segundo Avião, um conjunto de pequenos ensaios sobre a temática do terrorismo e a questão civilizacional entre o ocidente cristão e a África árabe/muçulmana. Cada um desses livros é interessante, mas não chega aos pés da verdadeira experiência orgásmica que é a leitura dos ensaios literários, críticas, reportagens e entrevistas de volumes como The Moronic Inferno and other visits to America (1986) ou Visiting Mrs. Nabokov and other excursions (1993). Estes dois são livros que volta e meia exigem uma ocasional releitura e posso afiançar da grande qualidade de quase todos os textos, o que faz com que tenha em permanente caixa, para leitura futura e certa, tanto The War Against Cliché (que recebeu o National Book Critics Circle Award em 2001 e cujo prefácio podem ler online), como do quase impossível de encontrar e penso que nunca re-editado Invasion of the Space Invaders (1982); e porque não, também de Pornoland, o ensaio que Amis escreveu para acompanhar o ensaio fotográfico de Stefano de Luigi sobre o mundo da pornografia internacional (de 2004 e o qual podem espreitolhar aqui).

Talvez a Quetzal nos faça ainda a amabilidade de colmatar estas falhas na bibliografia de Amis entre nós. Por mim, como verdadeiro viciado na sua escrita, faço figas.

_ n. fonseca

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