O irmão Brontë

5269d-wuthering-heights1É engraçado pensar que os primeiros romances publicados pelas irmãs Brontë (Charlotte, Emily e Anne sob o pseudônimo de Currer, Ellis e Acton Bell) tenham causado o rumor de que eram obras de uma mesma pessoa. Embora uníssonas no período de publicação, a identidade das três irmãs está preservada na trama e na dicção de cada uma das obras. E sendo Emily a mais fechada das três, estava portanto mais aberta para escrever de um jeito que ninguém poderia cogitar.

Até mesmo a mais velha, Charlotte, tinha inicialmente suas dúvidas quanto à qualidade de Wuthering Heights (O Morro dos Ventos Uivantes ou O Alto dos Vendavais). Chegou até a pedir para a irmã que cortasse algumas passagens do livro. “My sister Emily is an incomparable poet but I am not certain what she is as a novelist”, escreveu a um amigo. Justo Charlotte, que convenceu as duas irmãs a escreverem um romance também, apresentou os três volumes a vários editores e no final, quando conseguiu o sim de um deles, o recebeu com a irônica condição do destino: que o seu romance, The Professor, ficasse de fora. Mas a decepção durou pouco: Jane Eyre viria depois e lhe traria mais alegrias do que as outras duas Brontë puderam experimentar.

Wuthering Heights só foi receber sua primeira resenha positiva após a morte de Emily, três anos depois da publicação, por Sidney Dobell. “É a obra prima de um poeta (…) de tanta riqueza e economia, de aparente facilidade, de uma arte tão instintiva”. Recebeu comentários ofensivos e ridicularizadores até então. “De uma inexpressividade dolorida” (Atlas Review). “Como um escritor de ficção, este autor precisa aprender os primeiros princípios da arte (…), é tão prematuro, tão grotesco, tão completamente escasso de arte, que nos choca como tudo o que é vindo de uma mente de tão limitada experiência” (The Britannia). “A ação se passa no inferno, só que os lugares e as pessoas têm nomes ingleses” (Dante Gabriel Rosetti). Charlotte a defende no futuro: “Ela não teve a chance de ler Jane Austen ou Dickens”. A maioria do que lia eram novelas de suspense e terror de revistas da época (Blackwood, Fraser).

Para conseguirmos acessar a vida de Emily Brontë, nada se faz tão precioso quanto a presença de Charlotte Brontë. Se, por exemplo, formos em busca de cartas, somente três de Emily foram preservadas – pouquíssimo em comparação com as setecentas cartas de Charlotte que ficaram para a História. O fato é que esse caráter registrador de Charlotte, e a valorização que ela deu desde início aos poemas das irmãs (e não aos do irmão, que já tinha alguns publicados em revistas, muito superiores aos de Anne e aos da própria Charlotte inclusive), foram capazes de nos dar um vislumbre do que acontecia naquela casa em Haworth no séc. XIX.

Na época em que escreveu seu primeiro romance, Emily estava vivendo numa casa onde todos padeciam de intensas desilusões amorosas, exceto ela (até onde se sabe). Anne estava amando um rapaz que falecera; Charlotte um homem que se casara com outra mulher. Aquele terreno era novo, marcado por uma experiência que sua humanidade não havia explorado. A que mais lhe tocou foi, no entanto, a do irmão Branwell com uma mulher casada, que somava-se ao fracasso de uma vida desgarrada, voltada também para o álcool e algumas drogas. Emily o amava; acordava de madrugada para carregar o irmão bêbado até a cama; certa vez apagou um incêndio provocado por ele no próprio quarto. “Não contem ao papai”, pediu às irmãs. O pai chegava a dormir na cama com o filho já adulto temendo que se suicidasse. Charlotte e Anne o viam como um arruaceiro, um desestabilizador inconseqüente, e por não realizarem essa conexão com ele, não conseguiram adstringir a imensa fonte de inspiração que a irmã do meio encontrou. Emily não teria como saber como se comporta o coração de um homem quando vilmente iludido e descartado, mas com a existência de Branwell extraiu as substâncias, as expressões, as inclinações e os despreparos de Heathcliff e Hindley Earnshaw.

Foi na visão do irmão aniquilado por um sentimento que Emily enxergou que o amor que dura é o amor contrariado. Talvez por isso Wuthering Heights concentre o maior índice de ódio por centímetro quadrado da literatura. Lá estava Branwell: semanas sem dormir e sem comer, praguejando contra uma existência sem acertos e desolado. Nunca conseguiu ser o homem que desejava. Aí se encontra a chave com a qual Emily abriu as portas de Wuthering Heights.

Numa viagem que fez a Liverpool em agosto de 1845, Branwell relatou à irmã que a cidade estava cheia de imigrantes irlandeses morrendo de fome pelas ruas. Muitos órfãos também. Diante dessa voz e dessa visão ela encontra Heathcliff criança, e assim nasce a trama. Wuthering Heights seria escrito no outono e inverno desse mesmo ano.

Além da influência humana, não só os poemas de Byron mas também sua biografia deixaram Emily perplexa na adolescência. Ao descobrir que durante as visitas diárias do poeta a Mary Chaworth, mulher por quem estava apaixonado na juventude, Byron ouviu uma vez a moça comentar à empregada: “Você acha que eu me importo com o garoto manco?!” Ele tinha realmente um problema nas pernas, e isso o atingiu como uma humilhação destruidora. Essa frase não só destruiu Byron como impressionou Emily, e foi repercutir muitos anos depois, na cena em que Catherine Earnshaw revela seu amor e sua repulsa por Heathcliff para a empregada, sem saber que ele estava no recinto.

Em sua infância e adolescência, Emily teve fascinação por exploradores do Pólo Norte, tempestades de raios e as charnecas (terrenos de vegetação baixa e raras árvores pelos quais Emily foi apaixonada a vida inteira). Também amava a natureza como seu pai, e ouvia encantada as histórias que ele contava sobre homens e mulheres que se afastaram da sociedade e foram viver isolados em casas nos confins da Inglaterra. Também se afeiçoou à idéia de Lúcifer, ao descobrir que um dia o demônio já foi uma criatura boa – e essa concepção não vai moldar só Heathcliff como todos os heróis sombrios que ela produziu em segredo antes de Wuthering Heights (o universo mágico chamado Gondal, onde ela exercitou grande parte de sua produção poética). Assim que aprendiam a ler, todos os filhos Brontës pairavam sob uma epidemia de leitura. “Peças de cama”, como chamavam as produções teatrais que produziam para lerem antes de dormir. Mas ao contrário do que se pensa, na idade adulta já não existia uma troca tão intensa entre as irmãs.

A formação de Emily foi em poesia. Uma poesia rimada, estruturada, cabível à época, com uma simplicidade de chamamento imagético. E de repente em Wuthering Heights acontece o salto: um texto sem digressões, bem amarrado, onde nada passa sem retumbar. Isso é possível encontrar em vários trechos que comprovam que não há uma só grande contadora de histórias ali, mas literatura de primeira com ricos ornamentos poéticos:

“Pode-se fazer uma idéia da força do vento norte naquelas alturas (…) por uma fila de magros espinheiros de ramos estirados para um lado só, como se implorassem uma esmola do sol”.

de discurso:

“Se eu agora me casasse com Heathcliff, seria uma degradação; e, por isso, nunca há de ele saber do amor que eu lhe tenho. E não é porque ele seja bonito, Nelly, mas porque ele é mais eu do que eu própria”.

e de criação de personagem:

“Ele tinha cerca de quarenta anos: período de vigor intelectual durante o qual só raramente os homens acariciam a ilusão de casar por amor com raparigas mais jovens; este sonho fica reservado para o consolo do nosso crepúsculo”.

Charlotte recebeu duas propostas de casamento, e rejeitou as duas. Emily e Anne, nenhuma. A necessidade de ser sozinha, de se comunicar com o não-visto, de se vestir com modas desatualizadas, desenhar e tocar piano eram adereços da aversão de Emily ao convívio social (ao contrário da timidez de Anne; e essa diferença Elizabeth Gaskell deixa bem claro em sua biografia sobre Charlotte). A partir de uma época, era Emily quem cozinhava na casa, sempre com um livro à mão – não de culinária.

Chegou a preparar um segundo romance, mas o destruiu antes de morrer. Morreu através da já conhecida gripe que pegou no funeral de Branwell; e a essa gripe eu daria o nome de desnecessidade, desdesejo de viver.  Morreu três meses depois, cultivando uma inflamação no pulmão – negou tratamento médico. Sabia que eles não tinham a capacidade de curá-la como não foram capazes de dar uma saúde digna à irmã mais nova, Anne, que passou a vida inteira num corpo debilitado. Então negou a amizade da família, isolou-se em si. Ficava muda, esperando a doença se agravar. Quando percebeu o avanço, a fim de evitar o sofrimento físico, mas não a morte, permitiu que as irmãs  chamassem um doutor. Morreu antes que ele chegasse. Seu cachorro preferido, Keeper, com quem passeava pelas charnecas e já se tornavam uma lenda na região, ficou deitado na frente de seu quarto durante semanas. Sua irmã, Anne, morreria cinco meses depois, com vinte e oito anos de idade.

Depois de perder a mãe com poucos meses de vida, ganhar pouco fascínio pelas coisas que existem, ver que literatura (elogiada ou ridicularizada) não tem força para dar sentido a uma existência, a saúde frágil da irmã mais nova, a incapacidade da medicina e, principalmente, ver o irmão morrer sem qualquer consideração de quem amava pelo sentimento que o mortificava, Emily Brontë pega carona na primeira possibilidade de partir e nos deixa com Wuthering Heights, um maravilhoso filho único “sujo, roto, de cabelos pretos, já crescido o bastante para andar e falar” por ela.

Enzo Potel

O Morro dos Ventos Uivantes
Emily Brontë
trad. Rachel de Queiroz
Record
1995

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