Dobra, Adília Lopes

dobraA Assírio & Alvim reúne neste volume intitulado Dobra a totalidade de livros publicados entre 1983 e 2007 por Adília Lopes, pseudónimo de Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira. O título Dobra remete imediatamente o leitor para a noção de estar perante a continuidade de Obra, volume de poesia reunida da autora, publicado em 2000, pela Mariposa Azual, com ilustrações de Paula Rego na capa.

Da mesma forma que em Obra as ilustrações de Paula Rego ilustravam circunstâncias da escrita de Adília Lopes, também a capa desta nova edição da Assírio & Alvim, uma pintura de S. Vianna, avô materno da autora, é significativa em relação ao conjunto de livros que aqui se apresenta, no sentido em que nela é representado um motivo recorrente na produção literária de Adília Lopes, a boneca – símbolo de infância e elemento que surge em diversos poemas que compõem este volume de poesia reunida.

Mas a boneca que surge nesta capa não será apenas esta alusão óbvia a um topos recorrente ao longo de uma série de textos mas também, a meu ver, símbolo de dramatis personae – personagens diversas que são parte integrante desta poesia e que desaparecem e tornam a surgir de livro para livro, como por exemplo Mariana Alcoforado. Neste sentido, a imagem converte-se numa alusão à oficina de escrita da autora, mas também numa referência à própria autora enquanto personagem, sendo que o facto de esta se socorrer de um pseudónimo corrobora esta leitura.

Movendo-nos da capa para o interior do livro, deparamo-nos com aquilo que aponto como uma falha desta edição: o facto de, tratando-se de um volume que reúne vinte e quatro anos de poesia, não existir qualquer introdução geral ou prefácio, tanto para efeitos de elucidar um leitor não familiarizado com a obra de Adília Lopes de alguns dados relativos aos textos que aqui se compilam, quanto (e justamente) por se tratar de um volume de poesia reunida, nos quais, por regra, uma foreword, ainda que não sendo indispensável, assume sempre alguma pertinência.

Posto isto, deparamo-nos com uma edição em geral cuidada, cujas discrepâncias em relação a edições originais são apontadas pela autora numa nota inicial.

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Na página 646 da obra Adília Lopes faz publicar um texto seu sobre uma exposição de Armanda Duarte. Considerando a obra desta pintora, a dado ponto a autora afirma:

«É uma arte pobre. Parte de uma atenção ao quotidiano. Precisa de uma âncora objectiva. Assim, um dos trabalhos são círculos de barro que contêm água. Lembram os pratos por debaixo dos vasos com plantas onde a água e a terra de misturam lentamente. A pintora partiu de um cuidado, de uma atenção pelo mais insignificante, pelo mais desprezado: não é a planta, não é o vaso, é o prato por onde escorre a água pelo buraco do vaso, para não sujar o chão. E nem isso é. São os grãos de barro na água, uma coisa físico-química, a poesia da matéria.

Esta arte é pobre, ascética, mas também é brincada. Armanda Duarte tem a serieda de uma menina da 2ª classe que aprende a tabuada e que brinca com as bonecas como se isso fosse a coisa mais grave do mundo. É grave e leve.»

Creio que nesta citação se encerra o espírito da poesia da própria Adília Lopes. Trata-se de uma poesia que parece radicar no quotidiano («poesia da matéria») e que, contudo, às vezes com a inserção de uma pequena uariatio, o transfigura. Um exemplo que me parece ilustrar esta afirmação é o poema intitulado «À Maneira de Vieira»:

Mas eu
não morro
nunca
e eternamente
busco e consigo
a perfeição
das coisas
porque sou
ateniense e grega.

Este poema resulta de uma corruptela (e da junção) de duas citações, uma de Cesário Verde e outra atribuída a Sócrates, que se encontram ambas inscritas nas paredes da estação de metro da Cidade Universitária em Lisboa. Uma arte intimamente inscrita no quotidiano.

Quando Adília Lopes recorre à imagem «[…] dos vasos com plantas onde a água e a terra de misturam lentamente […]», esta mesma imagem seria aplicável à forma como Adília Lopes se movimenta dentro de inúmeras tradições literárias (desde a literatura da antiguidade clássica, passando pela literatura medieval ou pela literatura portuguesa contemporânea) que conhece e que incorpora (por vezes explicitamente) nos seus poemas, como é o caso do poema «Fedra está apaixonada»:

Fedra está apaixonada
por Hipólito
Hipólito não está apaixonado
por Fedra
Fedra enforca-se
Hipólito morre
num acidente

Dido está apaixonada
por Eneias
Eneias não está apaixonado
por Dido
Dido oferece uma espada
a Eneias
Eneias esquece-se da espada
quando se vai embora

Dido suicida-se
com a espada esquecida
por Eneias

Um desgosto de amor
atirou-me para um
curso de dactilografia
consolo-me
a escrever automaticamente
o pior são os tempos livres.

Neste poema parte-se da literatura para chegar à vida. Das muitas afirmações que se pode fazer acerca da poesia que neste livro se reúne, falar dos seus aspectos mais bem conseguidos ou mais desequilibrados (e esta é uma questão de perspectiva pessoal, depende do olhar de quem se propor ler a totalidade da obra de Adília Lopes), creio que esta é a afirmação mais justa e mais acertada acerca deste conjunto de livros. E este, penso, é o melhor elogio que se pode tecer a qualquer obra literária. Creio ser o caso de Dobra: Poesia Reunida.

_ Tatiana Faia

Dobra: Poesia Reunida
Adília Lopes
Assírio & Alvim
2009

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